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O protagonismo da segunda safra

Demorou 14 anos – de 2001 a 2015 – para a produção brasileira de grãos saltar de 100 milhões para 200 milhões de toneladas. Daí para 300 milhões de toneladas poderia ter levado a metade do tempo, não fossem os problemas climáticos que limitaram a safra atual a 272 milhões de toneladas. Ficou para 2023, talvez até com certa folga, se não houver susto.

Boa parte do crescimento acelerado se deve à segunda safra. A “safrinha” deixou de ser secundária para se tornar protagonista da agricultura brasileira. A parcela da área de verão cultivada pelo menos mais uma vez no mesmo ano agrícola passou de 32% para 47% em uma década. Em 21/22, foram plantados 51 milhões de hectares na primeira safra, 80% dos quais com soja e os demais divididos principalmente entre milho, feijão, arroz, algodão e amendoim. Desse total, 24 milhões de hectares foram novamente cultivados na segunda safra – dois terços com milho, cabendo o restante ao feijão, sorgo, girassol, trigo e outros cereais de inverno (como triticale, aveia e cevada) e pulses (como feijão mungo, feijão caupi, gergelim e grão de bico).

A grande fase de expansão da segunda safra no Brasil nasceu da iniciativa dos produtores aliada à evolução das ciências agronômicas. O Ministério da Agricultura teve papel importante na formação de políticas públicas que ampliaram a oferta de crédito num período do ano em que não havia recursos para custeio e proporcionaram acesso à tecnologia. O estabelecimento de programas de auxílio à comercialização (como o PEP e o PEPRO) também foi essencial para as regiões menos providas de infraestrutura logística, como era o caso do Cerrado quase duas décadas atrás.

Por muito tempo, o papel principal da segunda safra era possibilitar aos agricultores o aproveitamento de recursos como terra, máquinas e pessoal -, mas suas margens eram relativamente baixas. Não é mais assim. O milho proporciona atualmente aos produtores uma rentabilidade equivalente à da soja. Na próxima temporada, a perspectiva é que a segunda safra seja mais rentável do que a primeira, principalmente no Cerrado.

Esses resultados têm pelo menos três desdobramentos importantes:

*Mudança no planejamento agrícola. Há alguns anos os produtores de algodão segunda safra preferem colher a soja antecipadamente, ainda que renunciando a uma parcela da produtividade, para não ter de semear o algodão fora do calendário ideal. Algo semelhante começa a acontecer com o milho, que passa a ditar o cronograma geral do planejamento agrícola. Por motivos semelhantes, o peso adquirido pela segunda safra impulsiona o mercado de máquinas agrícolas. É importante que os produtores tenham capacidade operacional para plantar a safra de verão o mais rapidamente possível e ela possa ser colhida a tempo de assegurar o melhor calendário para a segunda safra.

*Sustentação da rentabilidade. Sem as ótimas margens das segundas safras, especialmente do milho, seria difícil aos produtores cobrirem os custos de arrendamento, que praticamente dobraram na última década.

*Ampliação do mercado para o milho brasileiro, tanto internamente quanto no exterior. O crescimento da segunda safra permitiu suportar a expansão do consumo doméstico de milho de 51,5 milhões para 74,8 milhões de toneladas de 2012 para cá – um aumento puxado tanto pelas indústrias de proteínas quanto pelo emergente setor de etanol de milho. Salto semelhante ocorreu nas exportações, que passaram de 23,5 milhões para mais de 40 milhões de toneladas no período – e não deve parar por aí, considerando a recente conclusão das negociações de um acordo sanitário para finalmente abrir o mercado chinês ao milho brasileiro.

Pode-se argumentar que a conjuntura internacional que elevou os preços das commodities agrícolas nos últimos anos tem muito a ver com o cenário. De fato, o momento favorável para o produtor brasileiro começou com os desequilíbrios comerciais causados pela guerra comercial entre China e Estados Unidos, em 2018, e vem sendo prolongado até agora, na medida em que a Ucrânia – um dos quatro maiores exportadores mundiais de milho – reduziu significativamente a participação no mercado após o início da guerra com a Rússia.

A crescente atratividade do milho resulta de um conjunto de fatores. A produtividade subiu graças ao melhoramento genético e aos investimentos em fertilidade, perfil de solo e irrigação – a área agrícola irrigada no Brasil cresceu mais 22% de 2017 a 2019, chegando a 8,2 milhões de hectares, com potencial efetivo de expansão para 13,7 milhões de hectares em alguns anos, segundo os dados da Agência Nacional de Águas. O desenvolvimento da infraestrutura logística – os portos do Arco Norte são um bom exemplo – resultaram num aumento da competitividade.

Por fim, ocorreu um robusto crescimento na demanda: o trade global de milho dobrou em dez safras e deve ultrapassar em 2023 a marca de 200 milhões de toneladas pela primeira vez na história, superando o trigo na posição de produto agrícola mais negociado no mundo. Nesse período, a produção global aumentou a uma taxa menor, cerca de 40%.

Numa projeção conservadora, a produção de milho na segunda safra brasileira pode crescer cerca de 80% até 2032. Na próxima década, o Brasil terá condições de liderar as exportações mundiais de milho, como aconteceu com a soja. Há amplo espaço para a expansão de outras culturas na segunda safra. É o caso dos cereais de inverno no Sul do Brasil – algo que demandará o apoio aos produtores cooperados e quem sabe alguma dose de políticas públicas. Outro exemplo é a perspectiva de forte expansão do trigo no Cerrado – inclusive em estados do Nordeste, como a Bahia, sustentada pelas novas variedades desenvolvidas pela Embrapa.

Haverá desafios. A produção crescente e diversificada, com um nível de investimento cada vez mais alto, demandará dos produtores mais capacitação, preparo e capacidade de adaptação. Será preciso continuar investindo, não só nas lavouras, mas também na gestão das fazendas e na comercialização de uma safra cada vez maior. Até porque está em gestação a próxima revolução: a de uma “terceira safra”, seja com a produção de grãos em áreas irrigadas ou com a produção de carne e produtos florestais oriunda da integração lavouras-floresta-pecuária.

Fonte: Valor Econômico

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