12.jun.2012 – Canavial é queimado para eliminar a palha da cana-de-açúcar em Ribeirão Preto (SP)Imagem: Fernando Calzzani/ Futura Press
O governo de São Paulo afirmou, em um recurso que tramita na Justiça Federal, que as queimadas de palha de cana-de-açúcar realizadas pelas indústrias do setor no interior do Estado não são “potencialmente degradantes” para a saúde humana e o meio ambiente, o que dispensaria um estudo prévio de impacto ambiental.
A afirmação contraria pareceres técnicos apresentados pelo Ministério Público Federal (MPF) e decisões tomadas pela Justiça desde 2013 sobre as queimadas em um dos principais polos de produção de etanol e açúcar no Estado, na região de Piracicaba (SP), a 136 km da capital paulista.
O inquérito civil público foi aberto há mais de uma década, em 2010. Descobriu-se que o Ibama não realizava o licenciamento e ambiental nem expedia as autorizações de queima controlada porque essas funções haviam sido repassadas ao governo estadual, sob responsabilidade da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). O órgão estadual, por sua vez, informou na época que “não exige ou promove o licenciamento ambiental e tampouco o Estudo Prévio de Impacto Ambiental”, segundo o MPF.
No processo, a Justiça já havia determinado a suspensão das licenças para queima da palha em 16 municípios da região e determinado que o governo de São Paulo e a Cetesb se abstivessem de emitir novas autorizações de queima sem a realização de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima).
A apelação tramita no Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul) sobre uma decisão tomada por unanimidade por desembargadores da 4ª Turma do tribunal. O TRF ainda decidirá sobre o recurso apresentado pela PGE (Procuradoria Geral do Estado), representante do governo estadual no processo.
Em 20 de setembro passado, a PGE peticionou um embargo de declaração (pedido de esclarecimento sobre a sentença) sob o argumento de que “trouxe ponderações relevantes no processo em relação à impossibilidade de enquadramento da queima de palha de cana-de-açúcar como atividade essencialmente ou potencialmente degradante”. E segue: “Caso contrário, a atividade não seria permitida pela legislação federal e estadual sem a exigência de EIA/Rima, o que não ocorre”.
A Procuradoria argumentou que a legislação federal permite o uso do fogo “em práticas agropastoris e florestais”, desde que siga determinadas “normas de precaução”, por meio de queimada controlada e previamente autorizada pelos órgãos de fiscalização ambiental.
A representante do governo afirmou ainda que o governo paulista, “por intermédio das secretarias de Meio Ambiente e da Agricultura e do Abastecimento” já estabeleceu “um rigoroso procedimento para a autorização da queima controlada da palha da cana-de-açúcar”, mas ele “não prevê a necessidade de elaboração de EIA/Rima por parte do empreendedor”.
Doenças respiratórias são “crônicas” e “parte do histórico familiar”
A Justiça decidiu, em 2013, suspender as licenças para queima de cana-de-açúcar em 16 municípios da região de Piracicaba e também proibir o governo de liberar novas licenças. A decisão depois foi confirmada na sentença de primeira instância e, mais recentemente, na decisão de segunda instância do TRF-3.
Naquele ano, ainda na gestão do governador Gerado Alckmin (PSDB-SP), a Coordenadoria Ambiental da Procuradoria Regional de Campinas da PGE já havia afirmado, em recurso contra sentença de primeira instância, que “fácil imaginar que o incômodo do carvãozinho é sazonal e esporádico; eventuais doenças respiratórias como asma, bronquites são doenças crônicas e fazem parte do histórico familiar, havendo variações de sensibilidade, alguns a irritantes químicos, outros a fumaça de cigarro, a ar frio, a exercícios físicos e outros fatores, resolvendo-se com consulta médica e anti-inflamatórios”.
“Mas a fome de milhares de pessoas atingidas abruptamente pela eliminação do trabalho de corte manual da cana por impraticabilidade na forma imaginada pela decisão agravada não pode esperar mais que alguns dias, sob pena de transbordar-se para o grave problema social e o consequente prejuízo financeiro ao agravado”, disse o órgão do governo.
Afirmou ainda que o “magistrado de 1º grau, com o devido respeito, deixou de considerar a realidade econômica e os impactos de uma interrupção abrupta da queima da cana. Com a obrigatoriedade de utilização EIA/RIMA para liberação da queima da cana-de-açúcar dificulta-se e atrasa a colheita e desta forma obriga-se a mecanizar a área colhida, tornando tal ato inviável economicamente”.
Queima é “degradante e altamente perniciosa”
Em entendimento contrário ao da PGE, o desembargador do TRF-3 André Nabarrete, relator do processo, escreveu em seu voto que “é consensual o reconhecimento de que essa atividade [queima] é degradante, além de altamente perniciosa à saúde dos trabalhadores”.
“Sua manutenção inclusive tem rendido ao Brasil acusações de organismos internacionais. A questão é posta, inclusive, de forma distorcida, como se fora preocupação com o desemprego, em lugar de o Estado optar por requalificar os trabalhadores para outras atividades, até mesmo para trabalhar na indústria da cana”, complementa.
O desembargador apontou ainda que “a Carta Magna determina o controle da produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida ou comprometam sua qualidade e o meio ambiente, bem como a necessidade de estudo prévio de impacto ambiental para obra ou atividade que potencialmente cause sua degradação”.
O MPF afirmou em 2014, em manifestação subscrita pela procuradora regional da República Sandra Akemi Shimada Kishi, que a queimada da palha é “atividade potencialmente causadora de significativa degradação ao meio ambiente” e, portanto, deve “submeter-se a prévio estudo de impacto ambiental, conforme previsto no artigo 225 da Constituição”.
Com a queimada, diz o MPF, “é lançada na atmosfera grande quantidade de poluentes prejudiciais à saúde, tais como o material particulado e o ozônio, que além de sérios danos ao sistema respiratório, causam chuva ácida, composta por dióxidos de enxofre resultante da atividade de queimada da palha da cana, que acarreta também nefastos danos ao solo, plantas, animais, com descontrole dos ecossistemas e poluição das águas dos rios. Hoje, essas conclusões técnicas e científicas de médicos, pneumologistas, engenheiros e especialistas conceituados são notórias”.
O MPF pontuou ainda que “a queima não se restringe aos locais em que há plantação de cana-de-açúcar, mas pode atingir áreas de reserva legal e matas ciliares, impondo processos erosivos e carreamento de material sólido aos leitos dos rios”.
A queimada produz um material particulado que é conhecido como “carvãozinho”. O MPF citou um relatório de 2009 da Cetesb que também alertou para a alta quantidade de ozônio gerado pelas queimadas. A substância pode comprometer o aparelho respiratório. Outro resultado da queima, de acordo com o MPF, são os Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPAs), que são classificados como substâncias mutagênicas, que podem induzir ao aparecimento de câncer no organismo humano.
As queimadas também podem causar, segundo o MPF, o aparecimento de substâncias tóxicas como o dióxido de nitrogênio, o dióxido de enxofre e o monóxido de carbono, um gás considerado “venenoso, incolor e inodoro”.
MPF mirou uma das principais usinas da região
Em outra ação civil pública aberta há nove anos, o MPF voltou suas atenções para grandes empresas do setor que atuam na região de Piracicaba, como a Raízen, hoje uma gigante do setor, com 860 mil hectares de área agrícola cultivada no país, R$ 120 bilhões em faturamento e 26 unidades de produção de açúcar, etanol e bioenergia, uma das maiores produtoras e exportadores do setor no país.
O principal executivo do grupo empresarial que inclui a Raízen, o empresário Rubens Ometto, mantém boas relações com o presidente Jair Bolsonaro. Em outubro passado, Bolsonaro e dois ministros, Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Bento Albuquerque (Minas e Energia), participaram da inauguração de uma fábrica de biogás da Raízen no interior de São Paulo.
Na ocasião, Bolsonaro cumprimentou “o senhor Ometto, pela coragem de empreender. E ele sabe, cada vez mais, que hoje em dia conta com um parceiro de peso, que é o chefe do Poder Executivo e seus ministros para os seus empreendimentos”. Em julho, Ometto havia dito que há “uma campanha” contra o Brasil no tema do meio ambiente, supostamente fomentada por “agricultores do mundo inteiro, países que protegem seus fazendeiros”.
Em 2012, o MPF ajuizou uma ação civil pública contra as usinas que “mais tinham queimado palha de cana na região nos cinco anos anteriores”. O órgão cobrava indenização “pelos inúmeros danos causados à saúde e ao meio ambiente”, com um valor de R$ 25 milhões atribuído à causa.
Duas usinas da Raízen também foram alvo do MPF, além de outros grupos empresariais. Em defesa da empresa, ecoando os argumentos do governo de São Paulo, os advogados da Raízen mencionaram uma suposta “incerteza científica sobre a existência e extensão dos impactos da queima da palha da cana [que] foi e continua sendo amplamente debatida, tanto no plano científico, como no jurídico”. A defesa da empresa disse na época que o MPF “presume” que “há nexo causal entre as atividades destas e os danos não comprovados que genericamente alega”.
Em 2018, a Cetesb lavrou uma multa de R$ 192 mil por uma queimada em área de responsabilidade da Raízen. Naquela época estava em discussão um possível acordo judicial entre a empresa e o MPF. A empresa disse à coluna que nunca descumpriu ordem judicial, que houve fogo “acidental”, que as queimadas “são um fator prejudicial para a própria cadeia produtiva” e que tem investido em prevenção (mais abaixo a íntegra da resposta). O acordo não prosperou. Em janeiro de 2019, a defesa da Raízen informou ao juízo que “no momento não vislumbra possibilidade de eventual composição”.
Governo trabalha para a redução da queima
Em nota à coluna, a PGE de São Paulo disse que “analisa os próximos passos jurídicos do caso. As leis estaduais nº 10.547/00 e nº 11.241/02 já disciplinam a queima controlada da palha da cana-de-açúcar, estabelecendo a política governamental de redução gradativa da queima, amparadas na competência legislativa concorrente assegurada aos Estados pelo inciso VI do artigo 24 da Constituição Federal”.
De acordo com a PGE, a Cetesb “segue com a fiscalização a partir de denúncias e vistorias rotineiras pré-agendadas. Em caso de infração são aplicadas as sanções previstas na lei ambiental”.
A ação civil pública na qual a PGE levantou, em recurso, a inexistência de efeitos “potencialmente degradantes” a partir da queima da palha foi ajuizada pelo MPF, em 2013, em face da Cetesb, governo de São Paulo e Ibama, mas chamou a atenção das principais entidades representantes das indústrias canavieiras, como a Organização de Plantadores de Cana da Região Centro-Sul do Brasil (Orplana), o Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo (Sifaesp), o Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo (Siaesp) e a União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo (Unica).
As entidades argumentaram, no processo, que “a sentença ignorou a Lei Estadual nº 11.241/02, que trata da utilização do fogo; que a referida Lei prevê prazo para a adoção da colheita mecanizada, pois são necessárias adaptações do setor ao novo método; que há rígido controle das áreas a serem colhidas com fogo; que o Protocolo Agroambiental permitiu aos pequenos produtores a utilização da queima controlada até o ano de 2017, por força do grande investimento necessário, bem como em razão do declive dos terrenos; que não há razão para a exigência de EIA/RIMA, pois os impactos ambientais causados pela queima da palha são conhecidos e previsíveis; que a sentença realizou um controle de constitucionalidade de lei em tese, o que é vedado em ação civil pública, e que, por fim, é de competência dos Estados a autorização da queima e a sua fiscalização”.
O compromisso citado pelas entidades é o Protocolo Etanol Verde, um “acordo voluntário firmado entre o Governo do Estado de São Paulo e o setor sucroenergético”, segundo o recurso da PGE, que “esteve vigente entre 2007 e 2017 e teve como principal objetivo a antecipação dos prazos para eliminação da queima da palha da cana-de-açúcar nos canaviais das usinas e fornecedores de cana signatários”. O acordo foi “reafirmado em 2017 através da assinatura do Protocolo Agroambiental Etanol Mais Verde”, do qual participam órgãos estaduais, a Unica e a Orplana.
Segundo a PGE afirmou em seu recurso no TRF-3, um total de 119 usinas e 12 associações de fornecedores de cana, que representam 5.778 fornecedores, aderiu ao protocolo com os objetivos: “1) eliminação da queima dos canaviais; 2) adequação à Lei Federal 12.651/2012; 3) a proteção e restauração das áreas ciliares; 4) a conservação do solo e da água; 5) o aproveitamento dos subprodutos da cana-de-açúcar; 6) responsabilidade socioambiental e certificações; 7) boas práticas no uso de agrotóxicos; 8) adoção de medidas de proteção à fauna; 9) prevenção e combate aos incêndios florestais”.
Raízen diz que investe para prevenir incêndios
Em nota, o MPF afirmou que a ação proposta em 2012 “se refere à indenização pelos inúmeros danos causados à saúde e ao meio ambiente” por empresas do setor.
“Em 2017, houve uma tentativa de conciliação. Porém, apenas a usina São Martinho aceitou fechar um acordo com o MPF e destinar R$ 360 mil a um projeto ambiental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em nenhum momento a Raízen demonstrou interesse em celebrar acordo daquele tipo. Desde então, o MPF aguarda a sentença da Justiça Federal. Não há mais provas a serem produzidas no processo. Houve notícias de queimadas de palha em 2018 por parte de usinas da Raízen na região, mas o fato é que ocorrências desse tipo diminuíram significativamente desde a proibição dessa prática, determinada pela Justiça Federal no âmbito de outra ação civil pública (0002693-21.2012.403.6109) e confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região”, disse o MPF na nota.
Em nota à coluna, a Raízen negou ter descumprido ordem judicial. A nota diz que houve “uma ocorrência acidental de incêndio”. A manifestação, na íntegra, foi a seguinte:
“A Raízen esclarece que não houve uso de fogo após a proibição das autorizações e, consequentemente, não houve descumprimento de decisão judicial. Ressalta que eventuais ocorrências de incêndio em áreas agrícolas não devem ser confundidas com uso de fogo como método de colheita – metodologia esta não utilizada pela companhia, cuja colheita é 99% mecanizada com a adoção da mais moderna tecnologia no campo.
Importante contextualizar que tal autuação foi feita pela Cetesb em 2018, sendo que os episódios nela citados e na própria Ação Civil Pública ocorreram entre 2006 e 2010, e dizem respeito justamente a uma ocorrência acidental de incêndio, que ainda está sendo julgada administrativamente pela Cetesb, sem nenhuma decisão final até o momento. O mesmo vale para a Ação Civil Pública, ainda sem decisão definitiva sobre o tema.
Formada em 2011, a Raízen é signatária do Protocolo Agroambiental – Etanol Mais Verde, compromisso renovado em 2018 e que determina a eliminação do uso do fogo na colheita de cana no Estado de São Paulo, além de ser integrante do PAME (Plano de Auxílio Mútuo Externo), sistema de cooperativismo entre empresas nas ações de grandes emergências.
Pertinente destacar que os incêndios agrícolas são um fator prejudicial para a própria cadeia produtiva, e por isso a empresa investe massivamente em ações de prevenção, monitoramento e combate a incêndios acidentais (provenientes de fogueiras, cigarros etc.), dedicando profissionais a essa atividade, com suporte de brigadistas sob demanda. São mais de 200 caminhões e veículos utilizados, além do suporte de combate aéreo em situações extremas, e, somente em 2020, foram investidos mais R$ 10 milhões na estrutura de combate – como melhoria dos caminhões dos veículos leves e tecnologia de monitoramento – bem como na realização de campanhas de conscientização junto aos fornecedores de cana, parceiros de negócios e moradores vizinhos às operações da companhia.”
Por Rubens Valente
Fonte: UOL