Foi dada exaustiva publicidade à decisão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) de baixar a mistura obrigatória de 12% para 10% de biodiesel no diesel comercial no período de 16 a 21 de junho de 2020. Com exceção do auge da paralisação dos caminhoneiros em 2018 que impossibilitou a logística para a realização da mistura, essa foi a primeira vez em que a Agência reduziu o percentual de biodiesel sob alegação de falta de entregas. Dado o evento, lamentável e histórico, é necessária uma reflexão a partir dos fatos para se concluir adequadamente acerca das responsabilidades.
O biodiesel é comercializado num sistema de leilões públicos bimestrais organizados pela ANP dos quais participam os produtores de biodiesel, as distribuidoras de combustíveis e a Petrobrás, como gestora do certame. O sistema de leilões garante competição do lado das vendas e das compras, com as usinas disponibilizando volumes a preços abaixo do Preço Máximo de Referência (PMR) e as distribuidoras disputando esses lotes entre si conforme sua previsão de vendas de diesel comercial e preferências por qualidade. Também proporciona estabilidade e previsibilidade, visto que as entregas são programadas e os preços fixos para os dois meses de vigência do contrato.
O primeiro de uma sequência de eventos ocorreu no final do mês de março, quando as distribuidoras de combustíveis entraram com pedidos de força maior para justificar a dispensa de retirada de biodiesel sem multas durante o 71º Leilão de Biodiesel (L71). Esse pedido causou estranheza pois, apesar de as medidas restritivas à circulação de pessoas reduzirem drasticamente o consumo de alguns combustíveis, este não foi o caso do diesel comercial. Como se sabe, este é de uso em veículos utilitários e seu mercado depende de variáveis relacionadas ao transporte urbano de passageiros e ao transporte de cargas. Foi nesse momento que se verificou redução das retiradas de usinas com preços maiores e aumento das que tinham vendido a preços mais baixos.
O segundo evento foi o pedido das distribuidoras para redução do percentual mínimo de retiradas sem multas de 95% para até 50% no L72. A justificativa era a imprevisibilidade da demanda por diesel e a necessidade de ajuste contratual a fim de que as empresas pudessem efetivamente retirar menos do que adquiriram no leilão. Apesar dos apelos das produtoras de biodiesel para se instalar um Comitê de Acompanhamento visando entender a real queda de demanda alegada pelas distribuidoras, a ideia não foi implementada pela ANP.
Os produtores, novamente, pediram a instauração do Comitê para acompanhar a comercialização do L72 e monitorar as entregas e retiradas, dado que os dados de retiradas de biodiesel apresentados pelas usinas não correspondiam ao cenário desenhado pelas distribuidoras – pelo contrário, indicavam que as retiradas das usinas estavam ao redor de 90%. Mais que isso, a safra recorde de grãos e a manutenção da circulação de ônibus nas cidades indicava que as vendas de diesel não somente poderiam ser previstas com boa margem de segurança, quanto que esta poderia rapidamente crescer depois da queda observada em abril. Abrimos parênteses para mencionar que, caso as compras representassem misturas acima da obrigatória estariam dentro do teto de 15% já autorizado pelo Conselho Nacional de Política Energética.
A decisão da ANP foi de reduzir o percentual mínimo para 80%, buscando um meio termo entre o pedido das distribuidoras e os argumentos contrários das produtoras de biodiesel. Não faltaram alertas da parte do biodiesel de que essa alteração carecia de base técnica, dados e poderia provocar redução também nas entregas de biodiesel e, por fim, desestruturação do mercado, caso as vendas de diesel fossem superiores às vendas no L72.
As consequências dessas mudanças foram graves e decorrem da alteração indevida de uma das principais regras dos leilões de biodiesel. Foram vendidos 1.020 mil m³ no L72, ficando disponíveis outros 256 mil m³, equivalente a 25,1% das ofertas. A queda de preços acompanhou a baixa demanda por parte das distribuidoras, gerando ociosidade e caindo em média 10%, apesar da elevação dos custos com as matérias primas e do câmbio depreciado. Algumas usinas, utilizando da regra pedida pelas distribuidoras e confiando que a queda das vendas seria da ordem de grandeza anunciada publicamente pelas distribuidoras, exportaram parte do óleo vegetal produzido no mês.
Tal foi a surpresa quando o cenário apontado pelas usinas se confirmou. As vendas de diesel caíram menos do que o esperado em maio e houve retomada das retiradas de biodiesel. O produto, entretanto, já estava com programação de produção e entregas em algumas usinas com base no quadro negativo criado pelas distribuidoras no L72. A ANP, então, propôs dispensa de mistura, rejeitada pelas usinas por representar uma nova punição aos produtores. Chegou-se ao entendimento da realização de um novo leilão (L74), complementar ao L72, para entregas de 22 a 30 de junho. Este certame foi realizado com sucesso com as vendas de 98,3% dos 74,2 mil m³.
Ainda assim, houve excesso de demanda no período de 16 a 21 de junho não atendido por usinas que venderam, mas não entregaram, no leilão de estoques. Atendendo a pedidos, as usinas de biodiesel fizeram um grande esforço para reverter parte da exportação de óleo vegetal e produzir mais biodiesel. Foi possível, apenas da parte das associadas da Associação Brasiliera das Indústrias de Óleos Vegetais (ABIOVE), ampliar as entregas no curtíssimo prazo em cerca de 6 mil m³, mas insuficiente para cobrir o volume necessário calculado entre 20 e 30 mil m³ decorrente dos volumes vendidos, mas não entregues, no leilão de estoques em prazo tão exíguo.
Cabe ainda lembrar que esse volume é irrisório quando comparado com 6.366 mil m³ que o Brasil irá consumir este ano e não teria sido um problema se as entregas no leilão de estoques tivessem ocorrido. Todo leilão de biodiesel traz consigo um leilão de estoques visando, justamente, garantir um volume de oferta em caso de default nas entregas regulares. Em razão de punições brandas frente à responsabilidade desta para o abastecimento, isso não ocorreu e houve insuficiência de produto naquele momento. É preciso, com urgência, endurecer as regas para as usinas que não entregam os volumes vendidos no leilão de estoque.
É verdade, portanto, que usinas que não entregaram no leilão de estoques tiveram parte da culpa sobre a situação que levou à decisão da ANP. Ainda assim, não parece correto atribuir aos produtores a maior parte dessa responsabilidade. O Brasil possui ainda milhões de toneladas de uma safra recorde de soja para serem processadas e produzir óleo, usinas com capacidade industrial e, acima de tudo, um setor produtor com responsabilidade quanto ao abastecimento de combustíveis. Os erros no leilão de estoques serão corrigidos, mas o setor espera também que os graves problemas decorrentes das mudanças de regras sirvam de lição, especialmente quando se buscou arbitragem de preços em meio à mais grave crise da história brasileira. Produtores e distribuidores que honram os contratos e agem de boa-fé não devem ser punidos pelos erros ou comportamentos oportunistas.
Fonte: Abiove